Hoje publicamos um artigo técnico a respeito da prescrição ocorrida na doação inoficiosa.
DA IMPRESCRITIBILIDADE DE ATO JURÍDICO NULO
Estabelece o art. 169 do Código Civil que:
“O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo”.
Dessa forma, muitos entendem que não há falar na possibilidade de prescrição em ação de nulidade, como é o necessário em caso de doação inoficiosa – vide a compilação de opiniões feita pelo Professor Flavio Tartuce:
De início, adotando a premissa da imprescritibilidade seguida por este autor, leciona Álvaro Villaça Azevedo que “a ação de nulidade, a seu turno, é imprescritível” (Teoria…, 2012, p. 350). Segundo Sílvio de Salvo Venosa, o art. 169 da atual codificação encerrou polêmica anterior, “para extinguir com a divergência na doutrina, o presente Código é expresso em relação à imprescritibilidade do negócio jurídico” (Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010, p. 191). Na mesma linha, Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado ponderam que “esclarece o legislador que o negócio nulo ipso iure não pode ser confirmado e que o direito de postular a declaração de sua nulidade não se sujeita à decadência” (Código…, 2005, p. 108). Por fim, as palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, para quem, “percebe-se, assim, em que pese antigas divergências doutrinárias, que o ato nulo não prescreve”. (Curso…, 10. Ed., 2012, p. 612. V. 1).
No mesmo sentido, há diversas orientações dadas por julgados do Superior Tribunal Justiça:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ARGUIÇÃO DE RELEVÂNCIA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. ALTERAÇÃO DE CONTRATO SOCIAL. ASSINATURA FALSIFICADA. NULIDADE ABSOLUTA.
PRECEDENTES DA TURMA.
AGRAVO REGIMENTAL. AÇÕES DE USUCAPIÃO E REIVINDICATORIA. TITULOS NULOS. IMPRESCRITIBILIDADE. 1. ATOS JURIDICOS NULOS NÃO PRESCREVEM, PODENDO SER DECLARADOS NULOS A QUALQUER TEMPO, NÃO VIOLANDO LEI FEDERAL O ACÓRDÃO QUE, ACOLHENDO ESSE ENTENDIMENTO, JULGA PROCEDENTE AÇÃO DE USUCAPIÃO E IMPROCEDENTE AÇÃO REIVINDICATÓRIA.
Em sentido contrário, podemos destacar alguns mestres do passado e presente que defendem a prescritibilidade dessas ações.
O saudoso mestre Caio Mário da Silva Pereira considerou que:
“A doutrina tradicional tem sustentado que além de insanável, a nulidade é imprescritível, o que daria em que, por maior que fosse o tempo decorrido, sempre seria possível atacar o negócio jurídico: quod nullum est nullo lapsu temporis convalescere potest. É frequente a sustentação deste princípio, tanto em doutrina estrangeira, quanto nacional. Os modernos, entretanto, depois de assentarem que a prescritibilidade é a regra e a imprescritibilidade, a exceção, admitem que entre o interesse social do resguardo da ordem legal, contido na vulnerabilidade do negócio jurídico, constituído com infração de norma de ordem pública, e a paz social, também procurada pelo ordenamento jurídico, sobreleva esta última, e deve dar-se como suscetível de prescrição a faculdade de atingir o ato nulo. Nosso direito positivo não desafina desta concepção. Estabelecendo que os direitos reais prescrevem em 10 e 15 anos, e os de crédito, em 20 (Código Civil, art. 177), o legislador brasileiro, em essência, enunciou a regra, segundo a qual nenhum direito sobrevive à inércia do titular, por tempo maior que 20 anos. Esta prescrição longi temporis não respeita a vulnerabilidade do ato nulo, e, portanto, escoados 20 anos do momento em que poderia ter sido proposta a ação de nulidade, está trancada a porta, e desta sorte, opera-se a consolidação do negócio jurídico, constituído embora sob o signo do desrespeito à ordem pública. “
Diz Humberto Theodoro Júnior:
“Admite-se, portanto, manter o princípio de que a nulidade é imprescritível. Mas, se a parte ou terceiro tem pretensão (naturalmente sujeita à prescrição) a exercer contra a situação fático-jurídica criada pelo negócio nulo, e se essa pretensão já foi atingida pela prescrição, faltar-lhe-á interesse para manejar a ação de nulidade, sem embargo da imprescritibilidade. É neste sentido que se pode afirmar e concluir que os negócios nulos não são totalmente imunes à eficácia da prescrição.“
Igualmente, estabeleceu o Recurso Especial 297117/RS, cujo relator era o Ministro Hélio Quaglia Barbosa:
“RECURSO ESPECIAL. CIVIL. ALIENAÇÃO DE BEM IMÓVEL. CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE. NULIDADE ABSOLUTA. CC/1916. DECLARAÇÃO DE OFÍCIO. RECURSOS EXCEPCIONAIS. PREQUESTIONAMENTO. REQUISITO CONSTITUCIONAL. EFEITO TRANSLATIVO DOS RECURSOS. NÃO OCORRÊNCIA. PRESCRIÇÃO VINTENÁRIA. PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR. RECURSO NÃO CONHECIDO.
Precedentes das 3ª e 4ª Turmas da 2ª Seção deste Superior Tribunal de Justiça.
DA CONTAGEM DA PRESCRIÇÃO A PARTIR DA SUCESSÃO
O Código Civil de 1916 estabelecia em seu art. 177 a prescrição vintenária, enquanto o Diploma atual reduziu tal prazo para apenas dez anos (vide art. 205).
Firmando a transição entre regramentos, dispõe o art. 2028 do CC-02 que “Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada”.
Isto é, dois são os critérios exigidos para a manutenção do prazo original, a redução do tempo e a transcrição da maior parte do período até 11 ou 12 (a depender da hermenêutica preferida) de Janeiro de 2003.
Entretanto, insta observar que o momento de início da contagem do prazo prescricional se trata de tópico controverso na doutrina especializada e na jurisprudência. Parcela dos juristas de maior renome do Brasil crê que isto se dá com a sucessão, pois não haveria antes real interesse de agir, senão vejamos:
“A ação para anular a doação inoficiosa pertence aos herdeiros necessários (Código Civil , arts. 1576 e 1721). Não há herdeiro antes da abertura da sucessão (Código Civil, arts. 1572 e 1577), porque não há herança de pessoa vida (Código Civil, 1.089)” (STF, RE 53.483, Relator: Ministro Hannemann Guimarães);
“(…) o mais que pode o herdeiro necessário, que se julgar prejudicado, pretender, é a garantia da intangibilidade da sua quota legitimaria, que em linha de princípio só pode ser exercitada quando for aberta a sucessão, postulando pela redução dessa liberalidade até complementar a legítima, se a doação for além da metade disponível” (STJ, Resp n. 124.220, Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha).
“É que incide o princípio da actio nata, pelo qual a prescrição somente tem início no momento em que se oferece ao seu titular o direito de ajuizar a ação. Não podia a autora, na condição de sucessora, ajuizar a ação quando ainda vivia seu pai, pela falta de interesse de agir, diante da impossibilidade de demandarem, firmado seu direito sobre herança de pessoa viva” (grifei) (Apelação, Processo: 0054861-4, Relator: Juiz Marques Cury)
Na própria Corte Bandeirante há quem entenda nesse sentido:
“(…) os herdeiros possuem mera expectativa de direito sobre os bens que pertencem ao de cujus até o momento do falecimento. Dessa forma, o prazo prescricional somente pode ser contado da data da doação para o próprio doador, não para os seus herdeiros necessários os quais não possuem legítimo interesse para tal mister antes da morte do doador” (grifei) (TJ-SP, Sétima Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n. 673.975-4/7-00, Relator: Douglas Iecco Ravacci)
Por parte dos doutrinadores, deve-se destacar o parecer do saudoso Professor Clóvis Beviláqua:
“A prescrição das ações reais começa a correr do momento em que alguém perturba o direito, praticando atos constitutivos dele ou incompatíveis com a sua existência. Sem dúvida, a prescrição nasce no momento em que o titular do direito pode exercer a sua ação e deixa de fazê-lo; porém, no direito real, esse momento se fixa pelo modo que acaba de ser exposto” (BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Ed Red Livros. 2001. Páginas 392 e 393)
DA CONTAGEM DA PRESCRIÇÃO A PARTIR DO REGISTRO DA DOAÇÃO
Outros creem que o início da contagem se dá já com o registro da própria doação. Havendo inclusive súmula do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto:
Súmula 494/STF: “A ação para anular venda de ascendente a descendente, sem consentimento dos demais, prescreve em vinte anos, contados da data do ato”.
Todavia, mesmo considerando a questão sob este prisma, parece que o mais adequado seria a aplicação do princípio actio nata (citado em julgado supra). Assim, importa observar a breve anotação do Professor Cristiano Chaves:
“A teoria contra non valentem agere non currit praescriptio (tradução: contra aqueles que não podem agir não fluem os prazos de prescrição), ou contra non valentem, de origem romana, propõe uma compreensão meramente exemplificativa das causas de suspensão e impedimento da prescrição, admitindo outras hipóteses paralisantes do lapso temporal baseadas em fortuitos ou em causas que, embora não previstas em lei, obstam o exercício da pretensão do titular.
O seu fundamento é ético: um prazo prescricional não pode correr contra aquele que está incapacitado de agir, mesmo não havendo previsão legal para a suspensão ou interrupção do prazo. Trata-se de uma compreensão equitativa, e não legalista, das hipóteses de suspensão e de interrupção dos prazos extintivos” (Cristiano Chaves, em postagem na sua Rede Social (Facebook) em 12 de Abril de 2016).
Em suma, ignorar as contingências reais de cada caso, desconsiderando a verdadeiras possibilidades de atuação dos ascendentes diante de uma doação inoficiosa, não se coaduna com as diretrizes do moderno direito privado – ou mesmo com os clássicos primeiros, cujo apelo jusnaturalista atentava a tal realidade.
Publicado por Felipe Cury