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Maio 3, 2023
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A Telemedicina e a Responsabilidade Civil do Médico

Da responsabilidade civil do médico – doutrina e julgados

Diante de todas as considerações que fizemos a respeito da resolução nº 2227/2018, importa, não somente aos médicos, mas aos operadores do direito, considerar os efeitos da telemedicina no campo da responsabilidade civil.

Não se encontra vasta jurisprudência especificamente sobre “Telemedicina”[1], posto que o avanço tecnológico ainda está tornando latente as implicações jurídicas de seu uso. No entanto, podemos extrair do Código Civil Brasileiro e da doutrina importantes considerações sobre o tema.

A jurisprudência brasileira tem esposado o entendimento de que quando o médico atende a um paciente, estabelece-se entre ambos um verdadeiro contrato, implicando que a responsabilidade médica é de natureza contratual. Logo, ao assumir o atendimento de um paciente, o médico assume uma obrigação de meio, não de resultado[2].

Esta observação é relevantíssima quando observamos a modalidade da teleconsulta, na qual, em tese, deverá haver o prévio estabelecimento de uma relação presencial entre médico e paciente – do contrário seria dificultosa a aferição de eventual culpa, seja por imperícia, negligência ou imprudência.

Logo, surgem os seguintes questionamentos: aplicar-se-ia a responsabilidade civil do médico, no disposto dos artigos 944 e 945 do Código Civil, ou aplicar-se-ia a responsabilidade civil objetiva, tal como se aplica o Código de Defesa do Consumidor?

A Doutrina compreende que tal culpa não é presumida, sendo necessário ao paciente provar a inexecução contratual por parte do profissional médico. Todavia, os julgados dos mais relevantes tribunais do país se dividem, existindo quem entenda (ainda que sejam minoria) ser possível caracterizar na relação consumerista entre paciente e médico liberal, ensejando a inversão do ônus da prova. Senão vejamos:

“A culpabilidade só poderia ser presumida na hipótese de ocorrência de erro grosseiro, de negligência ou de imperícia, devidamente demonstrados. Se os profissionais se utilizaram de sua vasta experiência e dos meios técnicos indicados, com os habituais cuidados pré e pós operatórios, somente uma prova irretorquível poderá levar à indenização pleiteada. Não tendo sido demonstrado o nexo causal entre a cirurgia e o evento morte, correta esteve a sentença dando pelo improvimento da ação” (RJTJRGS 164/340).

“A autora da ação não necessita provar que ficou paraplégica ao procurar o remédio para uma dor que parecia típica de torcicolo. Os profissionais (pessoas físicas e jurídicas) que assumiram a obrigação de conferir um tratamento justo é que necessitam provar que não erraram e que a paraplegia era inevitável. A eles incumbe a explicação da consequência. A autora apresenta apenas sua condição física atual como requisito probatório. Será lícito ou humano exigir-lhe algo mais? E ainda: seria correto obrigá-la, agora mais deserdada de fortuna material, a pagar médicos para provar que está em cadeira de rodas por erro médico?” (TJSP, AI 99.305-4/6)

Sobre o impasse, parece acertada a colocação feita pelo doutrinador Luis González Morán[3], citando Charmand e Monzein, Savatier, bem como Mémeteau e Mélennec:

“Ademais revela-se dificuldade intransponível, na aplicação da teoria da responsabilidade sem culpa à profissão médica: como saber se a morte ou a invalidez decorreram de um erro médico ou da própria natureza humana? De igual, seria absurdo atribuir ao conjunto de profissionais da medicina a responsabilidade por quaisquer danos, pois são exatamente esses profissionais que, em conjunto, mitigam as dores das pessoas. Por fim, se um ser humano está sujeito a doenças, ao sofrimento – e toda tentativa que vise suprimir a culpa conduz à transformação da prestação devida pelos médicos, tão só, em obrigação de resultado -, o que de modo nenhum se torna aceitável. (…) O próprio doente traz consigo um risco, derivado de sua patologia – e não é o médico quem o provoca. Adotar uma responsabilidade objetiva, neste caso, equivale a lutar contra a própria natureza humana. Dar cobertura a todo risco de doença ou morte, em atividade médica, corresponde a obrigar o médico a dar saúde ao doente a prolongar a vida, ultrapassando as potencialidades do médico enquanto homem, para transformá-lo num deus”.

Enfim, a inversão nestes casos gera “prova diabólica” e basicamente decreta, ignorando a necessidade de ampla defesa e o contraditório, a obrigação de indenizar por parte do profissional da saúde.

No caso da interconsulta, destacamos a hipótese da ocorrência do erro de diagnóstico. Como avaliar a responsabilidade de cada profissional no diagnóstico e na interpretação desse diagnóstico? A determinação da responsabilidade civil revela-se muito difícil, visto adentrar em termos estritamente técnicos. O erro de diagnóstico “caracteriza-se pela eleição do tratamento inadequado à patologia instalada no paciente, com resultado danoso. O erro de diagnóstico é, em princípio, escusável, a menos que seja, grosseiro[4]”.

Da mesma forma, na teletriagem, um erro de diagnóstico poderia direcionar o paciente a tratamento ineficaz, ou retardar tratamento que fosse ministrado em consulta presencial, seria evitado.

Por razões óbvias, a regulamentação da telemedicina pelo CFM demanda não tão somente a forma e conteúdo da forma como foi apresentado. A fiscalização, outrossim, tem importante destaque, principalmente quando a atividade do médico está vinculada com sua atuação em um hospital.

[1] Dentre os raros julgados neste sentido vale observar o HABEAS CORPUS Nº 82.742 – MG (2007/0106076-4), julgado pelo Superior Tribunal de Justiça.

[2] Excluem-se, no entanto, atos cuja obrigação é de resultado, como, p. ex., cirurgia plástica estética.

[3] KFOURY NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2018, página 85.

[4] KFOURY NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos médicos. 9 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2018.


Publicado por Felipe Cury


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