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A matriz de riscos nos contratos de concessão de serviços públicos e o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro
Dada a complexidade inerente aos contratos de concessão de serviços públicos – que tem a árdua tarefa de mediar os interesses do poder concedente, da empresária concessionária, e de vastíssima gama de stakeholders –, bem como sua natural incompletude – marcada pela constante necessidade de revisão e aprimoramento ante aos muitos fatos supervenientes relevantes à adequação do serviço prestado – tais parcerias exigem modelagem especialmente dinâmica e atenta às peculiaridades de cada setor econômico.
Este quadro torna-se ainda mais sensível ao se considerar a longevidade desses contratos (muitos deles vigentes por décadas), sendo fundamental a realização de sucessivas tratativas a fim de se garantir que o equilíbrio econômico-financeiro do negócio seja mantido. É o que a doutrina especializada aponta como o natureza relacional destes pactos, impondo conduta efetivamente colaborativa entre as partes.
Mas como o Direito disciplina esta realidade? Quem está obrigado a fazer o quê para proporcionar bases sólidas a serviço público adequado? O que é obrigação da Administração e o que é da concessionária?
Tradicionalmente, as concessões eram regidas por divisão estática dos riscos entre as partes. Assim, recaia sobre a empresa concessionária a chamada álea ordinária, isto é, os riscos próprios da atividade empresarial (como flutuações na demanda, subida dos preços dos fatores de produção, demandas trabalhistas comuns etc.). Não poderia reclamar alterações tarifárias em decorrência disso, devendo buscar por conta própria adequar-se às novas realidades.
Já sobre o poder concedenterecaia a álea extraordinária, caracterizada por sua imprevisibilidade ao concessionário, seja por decorrer de atuação do próprio Estado (como alterações unilaterais do contrato, criação ou majoração de certos tributos, exigência de licença ambiental etc.) ou mesmo por circunstância econômica incomum (decorrente de fatores externos à relação contratual e às vontades das partes, como uma crise repentina).
Entretanto, com o passar do tempo percebeu-se a fragilidade desse sistema. Afinal, não raras vezes uma relação travada entre o particular e a Administração fugia ao esperado: por exemplo, reconhecia-se boa capacidade de previsão de risco econômico pela empresa concessionária (por know how específico), ou mesmo observava-se que a imposição de determinado encargo ao particular simplesmente inviabilizaria a manutenção da relação contratual, criando despropositada barreira à realização do interesse público.
Assim, a alocação dos riscos passou a exigir – principalmente com o advento da Lei 11.079/2004, cunhada como a Lei das PPPs[1] – repartição objetiva em contrato. Desse modo, ao tempo da modelagem do negócio, deveriam ser esquadrinhados os riscos capazes de afetar a execução do serviço, consequentemente verificando-se qual das partes estaria mais habilitada para os gerenciar e prevenir.
Tal procedimento, além de decorrer da boa fé contratual, é criado no propósito de manutenção das relações concessórias, uma vez constatado como conflitos entre o concedente e o concessionário resultavam em prejuízo à prestação do serviço e, em última instância, aos próprios usuários.
A prática mostrou-se tão benéfica que a nova Lei geral de Licitações de Contratos Administrativos (nº 14.133/2021) estabeleceu em seu glossário requisitos básicos à redação da cláusula de matriz de riscos (artigo 6º, inciso XXVII[2]), indicou critérios à ponderação sobre sua utilização (artigo 22, caput, §§ 1º e 2º[3]) e até mesmo firmou hipóteses de uso obrigatório (artigo, §3º), a saber “Quando a contratação se referir a obras e serviços de grande vulto ou forem adotados os regimes de contratação integrada e semi-integrada, o edital obrigatoriamente contemplará matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado”.
Deveras, a adoção da repartição objetiva dos riscos em cláusula contratual se insere em esforço contemporâneo da Administração Pública brasileira a fim de superar postura de desleal predominância nas relações consensuais.
Sob a justificativa de se resguardar a supremacia do interesse público, o Estado costumeiramente valia-se de seus poderes exorbitantes para alterar ou extinguir contratos, não raras vezes por razões alheias ao bem comum.
Isto tudo posto, é preciso reconhecer o direito da empresa concessionária a valer-se do disposto na matriz de riscos para exigir o devido reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Assim, é garantida a sustentabilidade do negócio, encaminhada a adequação do serviço público e, mais importante, é observado o interesse público almejado com a técnica concessória[4].

[1] Art. 4º Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: […] VI – repartição objetiva de riscos entre as partes.
[2] XXVII – matriz de riscos: cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação, contendo, no mínimo, as seguintes informações: a) listagem de possíveis eventos supervenientes à assinatura do contrato que possam causar impacto em seu equilíbrio econômico-financeiro e previsão de eventual necessidade de prolação de termo aditivo por ocasião de sua ocorrência; b) no caso de obrigações de resultado, estabelecimento das frações do objeto com relação às quais haverá liberdade para os contratados inovarem em soluções metodológicas ou tecnológicas, em termos de modificação das soluções previamente delineadas no anteprojeto ou no projeto básico; c) no caso de obrigações de meio, estabelecimento preciso das frações do objeto com relação às quais não haverá liberdade para os contratados inovarem em soluções metodológicas ou tecnológicas, devendo haver obrigação de aderência entre a execução e a solução predefinida no anteprojeto ou no projeto básico, consideradas as características do regime de execução no caso de obras e serviços de engenharia.
[3] Art. 22. O edital poderá contemplar matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado, hipótese em que o cálculo do valor estimado da contratação poderá considerar taxa de risco compatível com o objeto da licitação e com os riscos atribuídos ao contratado, de acordo com metodologia predefinida pelo ente federativo. § 1º A matriz de que trata o caput deste artigo deverá promover a alocação eficiente dos riscos de cada contrato e estabelecer a responsabilidade que caiba a cada parte contratante, bem como os mecanismos que afastem a ocorrência do sinistro e mitiguem os seus efeitos, caso este ocorra durante a execução contratual. § 2º O contrato deverá refletir a alocação realizada pela matriz de riscos, especialmente quanto: I – às hipóteses de alteração para o restabelecimento da equação econômico-financeira do contrato nos casos em que o sinistro seja considerado na matriz de riscos como causa de desequilíbrio não suportada pela parte que pretenda o restabelecimento; II – à possibilidade de resolução quando o sinistro majorar excessivamente ou impedir a continuidade da execução contratual; III – à contratação de seguros obrigatórios previamente definidos no contrato, integrado o custo de contratação ao preço ofertado.
[4] Cf. GARCIA, Flávio Amaral. A mutabilidade nos contratos de concessão. São Paulo: Malheiros, 2021; JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo Concessões. Belo Horizonte: Fórum, 2015; MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das concessões de serviço público: (concessões, parcerias, permissões e autorizações). 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022; PEREZ, Marcos Augusto. O Risco no contrato de concessão de serviço público. Belo Horizonte: Fórum, 2006.


Publicado por Caio Zaccariotto


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