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Acordos na Justiça Penal: uma crescente tendência


Desde os primórdios da Vida em sociedade, os homens são confrontados por atos lesivos a bens jurídicos tidos como de suma importância. No princípio, em reação a isto possibilitava-se aos lesados vingança privada, por vezes existindo balizas típicas e de proporcionalidade para tanto - um marco civilizacional relevantíssimo nesse sentido foi o código de Hamurabi, cuja máxima “olho por olho, dente por dente” ecoou por toda a Antiguidade; e se hoje soa como manifesta selvageria, serviu à época como real lastro jurídico.

Assim, não tardou para que se reconhecesse necessária intervenção estatal mais profunda. Afinal, dada a gravidade das condutas em questão, não era de se estranhar que frequentemente os referidos limites fossem extrapolados, sendo pouquíssimo eficaz sua fiscalização. Portanto, firmou-se o monopólio estatal da pena.

Já no presente vive-se novo dilema. À medida em que se promove inflação penal (seja pela quantidade de tipos, seja pelo agravamento de suas circunstâncias e penas), mais dificultoso torna-se para o Estado promover todas as atividades que se arrogou historicamente. Especialmente neste país observam-se alguns fenômenos dignos de nota: sensível “policialização” dos litígios cíveis (com infindáveis boletins de ocorrência registrados com finalidade estritamente documental, bem como meio de revanche ou ameaça), inegável abarrotamento das promotorias e varas criminais e, pior, a superlotação das penitenciárias (estado de coisas inconstitucional segundo o própria suprema corte brasileira).

Para solucioná-lo, ainda que parcialmente, tem-se relativizado dois princípios da ação penal pública: sua obrigatoriedade e sua indispensabilidade. O primeiro indica inexistir a possibilidade de não proposição quando presentes as condições da ação, bem como ser mandatório o arquivamento se estas estiverem ausentes, sempre contando com controle jurisdicional; já o segundo firma que, uma vez apresentada a denúncia, não poderá o órgão acusador desistir da ação penal, bem como não poderá “retirar” recurso interposto.

Isto é, busca-se operar Justiça Penal negociada, pela qual o investigado ou réu e o Ministério Público poderiam firmar acordo com vistas redução de pena em detrimento da esfera de direitos do primeiro.

Insta observar que a mencionada relativização não é recente, ocorrendo desde o advento da Lei 9099/95 (Lei dos Juizados Especiais) cujo regramento permitiu que aos crimes de menor potencial ofensivo fosse ofertada transação penal e suspensão condicional do processo. Isto é, como critério de política criminal, observados os problemas descritos, optou-se por promover meios de resolução consensual pelos quais fossem os procedimentos impedidos de seguir seu trâmite habitual.

Contudo, essas medidas despenalizadoras foram apenas o início de forte tendência de assimilação de institutos do sistema penal anglo-saxão. É o que alguns autores já chamaram de “a marcha triunfal do Plea Bargain pelo mundo”.

À evidência existe muita discussão a respeito do tema. Muitos enxergam nisso uma importante evolução, outros acreditam se tratar de assimilação acrítica de institutos do processo civil, cujo resultado promoveria distorções absolutamente retrógradas.

Aqueles favoráveis à ampliação desse modelo de justiça tendem a apontar sua pretensa conformidade com os princípios do Sistema Acusatório, vez que haveria pleno protagonismo das partes, sempre promovido por atos voluntários, proporcionando dessa maneira a melhor da Administração da Justiça, com maior celeridade e eficiência.

Em sentido contrário, os críticos contestam por variados aspectos. Primeiro, pode-se recordar o argumento de Vinicius Gomes de Vasconcellos, o qual observa não ser o Ministério Público detentor do Poder punitivo estatal, mas apenas da pretensão acusatória, assim não podendo deste dispor. Nesse sentido, o jurista nota que tal compreensão pode decorrer de má hermenêutica (por imprecisa transposição de conceito do processo civil) do princípio dispositivo. Afinal, este não indicaria a disponibilidade do objeto do processo, mas da produção probatória, feita conforme a estratégia formulada pelo parquet.

Outros autores indicam também que a lógica da barganha é movida por ideologia “eficientista” capaz de sucatear a administração da justiça, posto que muitos seriam apenados sem qualquer razão para isso por meramente buscarem fugir dos sofrimentos inerentes à condição de réu e de punição majorada ao fim – o processo seria pena per se. Além disso, argumentam ser falaciosa a voluntariedade do acusado, pois estes sairia perdendo em qualquer uma de suas escolhas – algo analógico às provas de resistência existentes ao tempo das ordálias.

Igualmente, alegam existirem fortes incentivos à supremacia da investigação preliminar com relação ao processo, à entronização probatória da confissão e às prisões processuais e outras medidas cautelares visando a produção de provas.

Em suma, tratar-se-ia de simulacro acusatório para práxis inquisitorial. O juiz imparcial seria convertido em mero homologador e ao órgão acusador restariam às vestes de inquisidor – usurpando funções tradicionalmente do magistrado.

Um dos apontamentos mais interessantes sobre o tema foi feito por Maximo Langer, o qual abordou a supracitada “marcha do plea bargain” sob a ótica do direito comparado e observou que não raramente a importação desses institutos por países de cultura jurídica diversas produziam incoerências sistêmicas muito problemáticas. Sobretudo quando feitos verdadeiros “transplantes” jurídicos, sem as necessárias adequações, a possibilidade de posteriores distorções é considerável, o que chamava de “cavalo de tróia”.

A saudosa professora Ada Pellegrini Grinover, quando abordou a questão da iniciativa instrutória do juiz, manifestou sua compreensão do Direito Processual enquanto ramo jurídico norteado por princípios publicistas, com função social de manutenção da integridade do ordenamento jurídico visando a paz social, sendo incompatível com modelo “liberal-individualista” no qual a presença do juiz seria arbítrio distanciado. E verdadeiramente parece o sistema processual brasileiro estar conformado nestes ideais.

Com base nestas considerações, o professor Marco Zilli observa terem as incorporações feitas pela Lei 9099/95 funcionado como “espécie de experiência controlada de laboratório”, vez que não se projetou um ambiente de plena liberdade das partes. Para o jurista, é possível concluir que, naquele ponto, a opção não foi pelo transplante, mas sim pela tradução. De fato, não há uma identidade plena entre a transação/suspensão condicional e a plea bargaining. Houve sim a concessão às partes de espaços de maior autonomia para a definição dos destinos do processo. A liberdade, contudo, é regulada e orientada, incumbindo ao juiz um importante papel de controle e de fiscalização.

Mais recentemente, porém, novos modelos de justiça penal negociada foram assimilados pelo ordenamento jurídico pátrio.

Primeiro, com vistas a combater a criminalidade organizada, o Conselho Nacional do Ministério Público editou resolução pela qual disciplinava a possibilidade de acordos de colaboração premiada, os quais protagonizaram a Operação Lava Jato. Se a priori sua origem poderia ser considerada inconstitucional, posto ser matéria processual penal competência legislativa do congresso nacional, hoje a discussão não mais existe pois o instituto foi devidamente positivado pela Lei do Pacote Anticrime, alteradora da Lei das Organizações Criminosas. Sua finalidade precípua é, garantido o sigilo e a minoração da pena, a produção de provas, permitindo assim que os membros mais importantes dos grupos sejam acessados.

A mesma iniciativa legislativa promoveu a inclusão dos acordos de não persecução penal ao Código de Processo Penal. Visando reduzir o número de denúncias, seleciona crimes com pena mínima inferior a quatro anos e firma a obrigatoriedade de confissão circunstanciada, além de outras exigências pontuais conforme as circunstâncias fáticas e características do tipo.

Todavia, restam ainda muitos aspectos práticos em aberto, como, por exemplo, a disponibilidade do parquet em oferecer ou não esta possibilidade ao investigado. Tratar-se-ia de direito subjetivo ou de mera hipótese? Quais seriam os critérios aceitáveis para motivação de negativa?

Outra questão seria a conjectura de, após firmado acordo de não persecução penal, fossem desrespeitadas as condições estabelecidas neste. Posto já existir confissão circunstanciada, esta não promoveria contaminação psicológica do magistrado do processo vindouro? Parece que sim.

Posto isto, em parte considerável poderia se dizer que tais implementações são menos adaptadas em relação às anteriores. Verdadeiramente remetem aos moldes anglo-saxões, sem as considerar as diferenças existentes.

A realidade é que Código de Processo Penal brasileiro, dada a quantidade de reformas desconexas acumuladas ao longo das décadas, remete ao Frankenstein. De origem varguista (com inspiração fascista da escola técnico-jurídica italiana, mais precisamente do Codice Rocco), vem desde a Constituição de 1988 buscando adequar-se aos padrões garantistas, próprios de sistema acusatório, porém não raramente incorpora dispositivos com vista aos rescrudescimento do combate ao crime, em gesto populista.

Diversos projetos de novos Códigos foram apresentados, o último de 2010, sem prosperarem porém. Assim, até segunda ordem, a práxis processual penal brasileira vive uma terrível ambivalência de fontes de Direito.

Logo, é preciso que, seja qual for o caminho a ser tomado, inicie-se efetivo debate sobre política criminal em todo o país. Superando as paixões habituais, faz-se necessária reflexão profunda e honesta, com vistas aos impactos reais das escolhas feitas.

Pode-se certamente aproveitar em certas circunstâncias a justiça negociada no processo penal, todavia para tanto é necessário verificar em quais pontos perde-se a coerência sistêmica, sob o risco de operar novos transplantes. Do contrário, medidas como esta serão apenas mais uma cicatriz modista e mediocrizante no corpus juris nacional.


Publicado por Caio Zaccariotto


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