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Quando Infração Tributária torna-se Crime?


Ainda nos anos sessenta foram criados os primeiros tipos penais especificamente relacionados à atividade tributária. De lá para cá, muitas alterações legislativas se deram nesta seara, destacadamente a Lei 8137/90 que firmou uma variedade crimes contra a ordem tributária, distinguindo-os pelo sujeito ativo, particulares e funcionários públicos.

Todavia, uma questão precede o estudo dos delitos em espécie e seus elementos normativos. Afinal, o que daria conotação de ilícito penal à uma infração tributária? E como se daria o desenvolvimento de uma esfera até a outra?

Inicialmente, como prelecionado por Cezar Roberto Bitencourt e Luciana de Oliveira Monteiro[1], vale apontar o princípio da dupla tipicidade, pois, como no Direito Penal, as sanções fiscais exigem prévia análise da subsunção dos elementos constantes em conduta abstrata firmada legalmente aos fatos observados. Nesse sentido, deve-se compreender que esta averiguação necessariamente precede qualquer tentativa de imputação criminal.

Dado o caráter fragmentário do Direito Penal (a última ratio), dedicado à salvaguarda dos bens jurídicos fundamentais à Vida e autorizador de medidas mais drásticas em detrimento da esfera de direitos do indivíduo (encarceramento sobretudo), pode-se visualizar a situação como dois círculos concêntrico, sendo mais amplo o Direito Tributário, enquanto aplicador de sanções administrativas.

O Direito Penal ao centro (branco), com exigências maiores e consequências mais drásticas

Mas qual seria a divisa entre tais ramos?

A doutrina indica ser o dolo de fraudar a Fazenda Pública, isto é, mesmo ambos visando proteger ao erário, a esfera penal só se justificaria ante a efetiva intenção de subtrair (em sentido amplo) aos cofres públicos valores que lhes seriam de direito.

A jurisprudência tende a relativizá-lo tal concepção, contudo. Vide:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. VIOLAÇÃO DO ART. 619 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NÃO OCORRÊNCIA. COMPARTILHAMENTO DE DADOS SIGILOSOS PELA RECEITA FEDERAL COM O MINISTÉRIO PÚBLICO PARA FINS PENAIS. POSSIBILIDADE. TEMA DE REPERCUSSÃO GERAL N.º 990/STF (RE N.º 1.055.941 RG/SP). ART. 1.º, INCISO I, DA LEI N.º 8.137/1990. DOLO GENÉRICO. PRECEDENTES. TESES DE AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE AUTORIA, DOLO, MATERIALIDADE E PLEITOS PELA REDUÇÃO DO VALOR DO DIA-MULTA E DO MONTANTE ATINENTE À REPRIMENDA PECUNIÁRIA SUBSTITUTIVA. INVERSÃO DO JULGADO. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.º 07 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

(...)

  1. No tocante ao dolo, a fundamentação adotada pelo aresto objurgado está em perfeita consonância com a jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, fixada no sentido de que "não se exige a demonstração de dolo específico para a configuração do delito do art. 1º da Lei n. 8.137/90" (AgRg no REsp 1.640.083/RN, Rel.

Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 12/06/2018, DJe 25/06/2018). Ademais, para se alcançar conclusão distinta daquela esposada pela Corte a quo no tocante à alegada inexistência de dolo na conduta do ora Agravante, seria imprescindível o revolvimento dos fatos e provas acostados ao caderno processual, desiderato esse inviável na via estreita do apelo nobre, a teor da Súmula n.º 7/STJ.

(AgRg no REsp 1849734/SC, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 12/05/2020, DJe 28/05/2020)

HABEAS CORPUS. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS DECLARADO EM GUIA PRÓPRIA. APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA. CONFIGURAÇÃO. HABEAS CORPUS DENEGADO.

  1. É típica a conduta de deixar de repassar ao fisco o ICMS incidente em cada operação comercial, que não integra o patrimônio do empresário e, portanto, é indevidamente apropriado em detrimento dos cofres públicos.

 (HC 556.551/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 05/05/2020, DJe 05/08/2020)

Por sinal, este julgado faz referência a outro, do STF, pelo qual se manifesta:

“O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º (inciso II) da Lei 8.137/1990”. Com esse entendimento, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) concluíram na sessão desta quarta-feira (18) o julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 163334, interposto pela defesa de comerciantes de Santa Catarina denunciados pelo Ministério Público Estadual (MP-SC) por não terem recolhido o imposto.”

Por outro lado, a Doutrina entende que, ante a necessidade de justa causa, somente poderia se iniciar persecução penal uma vez findado processo administrativo pelo qual tivesse o contribuinte sido condenado ao pagamento de determinado montante. Assim, interpreta ser o esgotamento da via administrativa, e do lançamento definitivo do tributo portanto, como uma condição objetiva de punilidade ou de procedibilidade da ação penal.

Nesse sentido, a Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal é bastante clara: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.”

Naturalmente, tal disposição gera grandes discussões, pois, se por um lado garante a subsidiariedade do Direito Penal aos outros ramos sancionatórios e o direito de ampla defesa e contraditório; por outro, a depender da espécie de lançamento, poderá manter espada pendente sobre a cabeça do contribuinte por longos anos, bem como promover despropositado aguardo à atuação persecutória estatal.

Gustavo Badaró[1], por exemplo, tratando do lançamento por homologação - pelo qual a autoridade age apenas posteriormente confirmando ou não a atuação do particular - observa:

“Essa sistemática é real e relevantíssima do ponto de vista penal e da caracterização do crime tributário, na medida em que a apuração do valor devido, pelo menos no seu momento inicial e em caráter provisório, se dará por ato exclusivo do contribuinte, o mesmo ocorrendo com a antecipação do pagamento.

(...)

Em suma, antes e independentemente de qualquer atividade da autoridade fiscal e do lançamento, já haverá o pagamento do tributo em valor reduzido, ou mesmo a supressão do tributo, mediante omissão de informação ou prestação de informação falsa...”

Assim, acaba-se por observar novas relativizações da regra pela jurisprudência. O Superior Tribunal de Justiça, especialmente, vem assoldando posicionamentos nesse sentido. Vide:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. FRAUDE À FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA. NEGAR OU DEIXAR DE FORNECER NOTA FISCAL. COMERCIALIZAÇÃO DE CAMARÃO. SUPRESSÃO DE ICMS. AUSÊNCIA DE EMISSÃO DE CUPOM FISCAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. VEDADO O REVOLVIMENTO PROBATÓRIO. RECURSO FISCAL. RECONHECIMENTO DA INEXISTÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. INDEPENDÊNCIA ENTRE AS INSTÂNCIAS. NÃO INTERFERÊNCIA. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. RECONHECIMENTO DE OFÍCIO. LAPSO PRESCRICIONAL SUPERADO. CRIME REFERENTE A NEGAR OU DEIXAR DE FORNECER NOTA FISCAL. DELITO FORMAL. TERMO INICIAL. DATA DOS FATOS DELITUOSOS. CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. DESNECESSIDADE. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO DE OFÍCIO, EM RELAÇÃO AO CRIME PREVISTO NO ART. 1º, V, DA LEI 8.137/90.

(...)

  1. Entende esta Corte que as decisões civis ou administrativas, em decorrência do princípio da autonomia e independência entre as instâncias, não vinculam o exercício da jurisdição penal, sendo que, mesmo que a autoridade fazendária tenha concluído pela inexistência do dolo específico de fraude, respectivo desfecho não interfere, via de regra, na discussão na esfera penal sobre a existência do elemento subjetivo com intuito criminal. Precedentes do STJ.
  2. O crime de negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal, previsto no art. 1º, V, da Lei 8.137/90, é formal e prescinde de prévio exaurimento de processo fiscal, consumando-se no exato instante em que o agente deixa de emitir a respectiva nota fiscal, motivo pelo qual, nesses casos, o início da contagem do prazo prescricional ocorre a partir dos fatos delituosos e não da constituição definitiva do débito tributário. Precedentes.

 (AgRg no HC 509.346/RN, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 12/05/2020, DJe 18/05/2020)

Em resumo, observa-se considerável insegurança jurídica dos contribuintes, em especial os empresários cujas atividades podem possuir complexa carga tributária, vez que, ao arrepio do Princípio da Legalidade – segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei – utiliza-se do mais drástico instrumento do Ius Puniendi para cobrança de dívidas estatais.

Sob a escusa da independência das instâncias, o Processo Penal torna-se instrumento de coação aos inadimplentes, os quais, se tempo e recursos dispuserem, poderão socorrer-se das medidas despenalizadoras fixadas em lei.

[1] Direito Penal Econômico, Organizadores: Fernando Gentil Gizzi de Almeida Pedroso e Luiz Eduardo Camargo Outeiro Hernandez, Salvador, Ed. Juspodivm, 2017.

[1] Crimes contra a Ordem Tributária, São Paulo, Ed. Saraiva, 2014


Publicado por Caio Zaccariotto


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