É indiscutível que estamos ingressando na era da economia compartilhada ou colaborativa.
Aos tradicionais modelos de negócios B2C – business to consumer (entre empresa e consumidor) e B2B – business to business (entre empresas) acrescenta-se uma nova modalidade, chamada inicialmente de C2C – consumer to consumer e, mais recentemente, denominada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de P2P – peer to peer, significando algo como “mercado entre pares”, “par-a-par” ou “de pessoa para pessoa”.
Essa forma diferente de desenvolver a atividade é caracterizada pela presença marcante da tecnologia, pelo acesso mais amplo aos produtos ou serviços oferecidos e pela presença de três partes: o consumidor, o fornecedor do produto ou serviço – não necessariamente estruturado para realizar negócios empresariais com habitualidade – e um intermediador (ou anunciante), responsável por aproximar as partes – na maioria das vezes, em sua plataforma virtual, por aplicativos para smartphones ou sites.
E é sobre a natureza jurídica da atuação do “intermediador” e se ele é ou não responsável por danos sofridos pelo consumidor do negócio que “intermediou” que versam as principais discussões, sob as premissas do Direito Civil e do Direito Consumidor.
Com efeito, não restam dúvidas quanto à responsabilidade das empresas pelos danos decorrentes dos serviços relativos à próprias plataformas, muitas vezes envolvendo o tratamento de dados pessoais, localização da oferta e o processamento de pagamentos.
O debate aparece quando se examina a relação de consumo que se constitui pelas duas partes ligadas pelos sites e aplicativos.
A esse respeito, é possível identificar duas correntes de pensamento.
A primeira, formada por aqueles que defendem a existência da relação de consumo e, consequentemente, a responsabilidade civil dessas plataformas pelos danos suportados pelo consumidor.
Os representantes dessa linha não ignoram que a empresa da plataforma (sites ou aplicativos para smartphones e tablets) não é proprietária do produto ofertado, tampouco irá executar os serviços oferecidos. Contudo, aludem que o negócio jurídico só se concretizou em razão da intermediação realizada pela plataforma.
Com efeito, identifica-se como fator essencial para a contratação pelo consumidor a confiança que surge pela presença do fornecedor do produto ou serviço no espaço ou no cadastro do site ou do app.
De fato, a maioria dessas empresas de tecnologia, desenvolvedoras dessas plataformas de anúncio ou intermediação, propaga a ideia publicitária de que o negócio se concretizará com maior facilidade se o consumidor estiver no ambiente que desenvolveu, por assim dizer. É pela confiança que inspiram que essas empresas fortalecem a sua reputação e atraem mais clientes (consumidores finais ou fornecedores de bens ou serviços).
E a confiança é protegida juridicamente, na medida em que pode ser interpretada como uma manifestação ou um elemento da boa-fé objetiva, a qual deve ser observada pela Política Nacional das Relações de Consumo (art. 4º, III, CDC) e cuja incompatibilidade torna a cláusula abusiva e nula de pleno de direito (art. 51, IV, CDC). Além disso, é diretriz para a interpretação de todo negócio jurídico (art. 113m caput e §1º, III, do Código Civil). E esse confiança merece proteção ainda maior nas relações de consumo.
O consumidor espera e presume que o site ou aplicativo tenha feito uma verificação mínima no perfil do fornecedor que com ele se relaciona, gerando a legítima expectativa de que o negócio se concretizará sem nenhum tipo de problema.
Remunerada pelas partes, geralmente pelo pagamento de uma “taxa”, calculada em percentual sobre o valor do negócio, a empresa da plataforma define o modo como as partes – consumidor e fornecedor – se relacionarão no seu espaço, quais as formas de pagamento serão aceitas, e como será estruturado o ambiente virtual em que as partes se aproximarão. Exerce a sua atividade com habitualidade, profissionalismo e com o intuito lucrativo, organizando os fatores de produção desse tipo de segmento.
Nesse quadro, entende-se que a empresa que organiza o site ou app se classifica como um fornecedor, nos termos do artigo 3º do CDC, in verbis:
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
A esse dispositivo se acrescenta a previsão no artigo 7º, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual “tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo”.
E, por consequência, há responsabilidade solidária dessa empresa por integrar a cadeia (ou rede) de fornecimento, conforme os artigos 3º, 12, 14, 18, 20 e 34 do CDC.
Essa foi a corrente adotada pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no julgamento da Apelação Cível nº 1005022-52.2018.8.26.0079, pela 25ª Câmara de Direito Privado. Observe a ementa:
RECURSO – APELAÇÃO CÍVEL – COMPRA E VENDA DE BEM MÓVEL - AÇÃO OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. Autor objetivando a obrigação de fazer consistente no desbloqueio dos jogos de videogame adquirido das requeridas, os quais não foram entregues conforme o combinado. 1. Legitimidade de parte da requerida EBAZAR (mercado livre) Reconhecimento. Relação de consumo caracterizada entre consumidor, vendedor e plataforma de vendas. Existência de ferramenta de comunicação que não pode servir como excludente de responsabilidade da Apelante, já que a empresa participa da cadeia produtiva, aufere lucros, e possui resguardado o direito de regresso em relação ao usuário do qual possui todos os dados 2. Dano moral. Danos morais não configurados no presente caso. Indenização indevida. Sentença parcialmente reformada. Recurso de apelação do autor parcialmente provido, descabida a majoração da verba honorária com base no artigo 85, parágrafo 11, do Código de Processo Civil, eis que ao recurso de apelação foi dado parcial provimento.
(TJSP; Apelação Cível 1005022-52.2018.8.26.0079; Relator (a): Marcondes D'Angelo; Órgão Julgador: 25ª Câmara de Direito Privado; Foro de Botucatu - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/05/2020; Data de Registro: 28/05/2020)
Nesse processo, o autor ajuizou ação de obrigação de fazer cumulada com indenização por danos morais contra a empresa do site de vendas, onde estava hospedado o anuncia do produto, e contra o vendedor de um console para jogos eletrônicos.
O TJSP examinou o recurso de apelação do autor, concluindo que a empresa requerida se caracterizaria como fornecedora, pois “sem ela seria impossível a aproximação das partes e a concretização da relação”. Pontuou:
“A solidariedade da empresa para responder pelo malfeito do usuário deve ser entendida como um risco do negócio, pois, por óbvio, de alguma forma, ainda que indiretamente, aufere lucros com as negociações realizadas entre os usuários, o que impede que se retire a sua responsabilidade pelos problemas causados pelo usuário vendedor, resguardado eventual direito de regresso e outras medidas restritivas àquele que lhe trouxe problemas, uma vez que tal requerida (EBAZAR) possui todos os dados dos usuários.
Note-se que nestas plataformas, usualmente existe canais de contato e um canal exclusivo de mediação para que os compradores possam exercer seus direitos de arrependimento e comunicar eventual não entrega de produto ou vícios do produto, ocorre que tal fato, não pode servir como uma excludente de responsabilidade, mas, sim, como uma forma de passar mais segurança ao comprador que busca os serviços do site”.
Desse modo, com esses fundamentos, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu a responsabilidade da plataforma como integrante da cadeia de fornecimento.
Por sua vez, existe a corrente que interpreta a atuação dos sites e apps de maneira diferente, afastando a sua responsabilidade sobre a relação de consumo entre o fornecedor do produto ou serviço e consumidor.
Segundo essa linha de pensamento, não há que se falar em responsabilidade solidária, uma vez que essas empresas não têm posse, muito menos propriedade sobre os produtos comercializados em seu espaço, tampouco dirigem ou executam os serviços ofertados. Isto é, as empresas não possuem nenhum tipo de controle sobre os produtos ou serviços oferecidos.
Em verdade, existem duas cadeias de fornecimento: uma, aquela relacionada ao produto ou serviço que o consumidor está adquirindo; outra, a cadeia dos serviços prestados pela empresa da plataforma. Essas cadeias são distintas e não se confundem.
A responsabilidade civil relacionada ao produto ou serviço objeto da relação de consumo é inteiramente do fornecedor desse produto ou serviço.
O serviço prestado pela empresa de e-commerce é a disponibilização de uma plataforma na internet que permite que um fornecedor ofereça seus serviços ou produtos e um consumidor pesquise os serviços e produtos que está interessado, que eles interajam e celebrem um negócio jurídico.
Consequentemente, a responsabilidade da empresa está limitada aos serviços por ela oferecidos,
A corroborar com esse raciocínio, destaca-se o art. 19 da Lei 12.965/2014, o Marco Civil da Internet:
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
Logo, se a regra é que o provedor não responde pelos danos decorrentes de conteúdo de terceiro, a mesma diretriz dessa norma merece ser aplicada quando o provedor é uma plataforma na qual se divulgam serviços ou produtos.
E, ainda, o artigo 3º da referida lei, em seu inciso VI, estabelece que a disciplina do uso da internet no Brasil tem como princípio a responsabilização dos agentes de acordo com as suas atividades, nos termos da lei.
A atividade em questão é o serviço de disponibilizar a plataforma virtual, como já esclarecido, podendo ser enquadrada no conceito de “aplicações de internet”, isto é, conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet, nos termos do art. 5º, VII, do Marco Civil da Internet.
Diante desse cenário, a atuação da empresa que oferece esse serviço se aproxima de uma revista virtual de anúncios ou classificados e sua responsabilidade se restringe ao serviço por ela prestado, atraindo a aplicação dos artigos 14 e 20 do CDC.
A empresa da plataforma de internet não integraria a cadeia de fornecimento do produto ou serviço anunciado em seu espaço, não possuindo nenhuma responsabilidade pelos danos ao consumidor daí resultantes.
Foi esse o entendimento adotado pelo mesmo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento do Recurso de Apelação nº 1001183-36.2014.8.26.0248, cuja ementa segue abaixo:
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. Contrato de compra e venda de veículo anunciado em "site" de comércio eletrônico. Autor vítima de estelionato. Ação ajuizada contra a Empresa Mercado Livre. SENTENÇA de parcial procedência para condenar a ré a restituir para o autor R$ 40.500,00, com correção monetária a contar do desembolso e juros de mora a contar da citação, arcando as partes, ante a sucumbência recíproca, com as custas e despesas processuais na proporção de metade cada lado, além da honorária do Patrono da parte contrária arbitrada por equidade em R$ 2.000,00, observada a "gratuidade" para o autor. APELAÇÃO da ré, que insiste na improcedência da Ação. RECURSO ADESIVO do autor que insiste na devolução, com a dobra, do valor pago e também na indenização moral. EXAME DOS RECURSOS. Empresa ré que atua como prestadora de serviço de disponibilização de plataforma virtual para anúncio de produtos e serviços ofertados por terceiros, sem qualquer intervenção na entrega do produto ou na prestação do serviço anunciado pelo usuário no seu "site", não se caracterizando como intermediadora do negócio anunciado tampouco como fornecedora do produto ou serviço envolvido no negócio, embora as recomendações e as dicas de segurança anotadas por ela ao usuário do "site". Demandante, vítima de estelionato, que agiu de forma ingênua, sem as cautelas mínimas de segurança ao providenciar a efetivação do depósito do preço do veículo anunciado por valor bem aquém daquele praticado no Mercado. Responsabilidade da ré não configurada, circunstância que torna prejudicado a pretensão adesiva do autor, a quem caberá arcar com as verbas sucumbenciais, arbitrada a honorária devida ao Patrono da ré em dez por cento (10%) do valor atualizado da causa, observada a "gratuidade". Sentença reformada. RECURSO DA RÉ PROVIDO. RECURSO ADESIVO DO AUTOR NÃO PROVIDO.
(TJSP; Apelação Cível 1001183-36.2014.8.26.0248; Relator (a): Daise Fajardo Nogueira Jacot; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro de Indaiatuba - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 05/02/2019; Data de Registro: 15/02/2019)
No caso em comento, o autor ajuizou ação contra a empresa do site de vendas alegando que tentou adquirir um veículo anunciado, mas que ao final foi vítima de fraude.
A sentença considerou que a requerida seria fornecedora, nos termos do art. 3º, do CDC e que não teria havido culpa exclusiva do autor, condenando-a ao reembolso do valor pago pelo autor da ação.
Porém, o E. TJSP reformou a decisão de Primeiro Grau, sustentando que a requerida atuaria como um site de anúncios de classificados eletrônicos, não se configurando como fornecedores de produtos ou serviços no sentido do artigo 3º do CDC.
Afirmou o v. acórdão que “o fato é que esse veículo de comunicação não participa das tratativas envolvendo o negócio, mesmo porque se limita à prestação de serviço mediante a disponibilização de plataforma eletrônica sem qualquer envolvimento na elaboração do anúncio do produto, não substituindo o verdadeiro vendedor ou o verdadeiro comprador em relação às condições contratuais, não podendo ser havido sequer como Empresa intermediadora do negócio”.
O Tribunal de Justiça igualmente expôs que a empresa não teria causado o prejuízo ao autor, porquanto sua atividade limitou-se à disponibilizar a plataforma virtual onde o anunciou se hospedou, e nesse serviço não teria havido qualquer defeito.
Destacou a existência de alertas no próprio site a respeito dos termos e condições de uso, de que os produtos eram de propriedade de terceiros e que não participa da entrega dos itens.
Pontou o acórdão também:
“Ora, não estando à ré obrigada a exercer fiscalização sobre a veracidade dos anúncios existentes em sua plataforma virtual e, ainda, não tendo ela participado da relação jurídica firmada entre o vendedor (estelionatário) e o comprador (autor), forçoso reconhecer que a ré não pode mesmo ser responsabilizada pelo prejuízo suportado pelo autor”.
Com isso, julgou-se improcedente o pedido do autor, afastando a responsabilidade civil da empresa.
Pois bem.
Evidentemente, esses serviços de “intermediação” e de “disponibilização de plataforma virtual” são exercidos com característica e nuances diversas por cada empresa, ora com atributos que indicam maior presença e influência na relação de consumo entre fornecedor direto e consumidor, ora com maior distanciamento.
Nos casos que conduziram a análise e o desenvolvimento do presente texto, infere-se maior acerto em se interpretar conforme a doutrina de Rui Stocco, a qual ensina que, quando o provedor de Internet age “como mero fornecedor de meios físicos, que serve apenas de intermediário, repassando mensagens e imagens transmitidas por outras pessoas e, portanto, não as produziu nem sobre elas exerceu fiscalização ou juízo de valor, não pode ser responsabilizado por eventuais excessos” (Tratado de Responsabilidade Civil, 6ª ed. São Paulo: RT, 2004, p. 901).
Com o devido respeito aos entendimentos diversos, mas o fato é que, nos casos aqui discutidos, as empresas não reuniram condições de verificar a qualidade dos produtos, nem de participar das negociações. Não tinham a obrigação de entregar os produtos. Não eram capazes sequer de atestar a existência dos produtos.
A rigor, sua atuação não era muito diferente do jornal que traz página de anúncios de classificados. Sua remuneração é devida por disponibilizar o local onde o fornecedor anuncia o seu produto. O conteúdo do anúncio e, principalmente, a qualidade do produto ou serviço é de responsabilidade exclusiva do anunciante, ou seja, do fornecedor.
Por nunca terem contato com os produtos, não é razoável que as empresas tenham responsabilidade sobre sua qualidade, quantidade ou vícios.
Todavia, tampouco é razoável se afastar de plano o enquadramento dessas empresas de e-commerce, startups, plataformas virtuais, intermediadoras e afins como fornecedoras, na acepção atribuída ao termo pelo Direito do Consumidor.
O correto e justo exame da responsabilidade civil dessas empresas depende da compreensão da operacionalização de suas atividades e do tamanho da fiscalização e da interferência que exercem. E a confiança e a boa-fé são fundamentais para essa reflexão, pois quanto maior a influência da empresa sobre o fornecedor, o consumidor e o objeto da relação de consumo, maior será a confiança proporcionada, inserindo-se na cadeia de fornecimento e surgindo a responsabilidade civil. Posto isso, não se pode estabelecer a priori se há ou não responsabilidade civil do chamado fornecedor não típico da relação de consumo, ou seja, da empresa de e-commerce que disponibiliza a plataforma ou faz a intermediação, por danos ao consumidor. A interpretação deve ser precedida de um estudo atento do modelo de negócio, da complexidade da operação e do nível de interferência e participação dessa empresa na relação entre consumidor e fornecedor direto.
Publicado por João Machado